segunda-feira, 9 de maio de 2016

A abolição da escravidão e o tempo presente

As históricas desigualdades sociais hierarquizaram o espaço urbano brasileiro e influenciam ainda hoje os elevados níveis de violência que enfrentamos.

Rodrigo Medeiros



Em tempos de grande perplexidade política, a revista “The Economist”, em sua edição de 23 de abril de 2016, apontou para as muitas heranças que o Brasil não discutiu adequadamente. Na matéria destacada na sua capa consta que “não há atalhos para resolver os problemas. As raízes da disfunção política do Brasil podem ser enxergadas na economia baseada no trabalho escravo do século XIX, na ditadura ocorrida no século XX e em um sistema eleitoral viciado em campanhas ruinosamente caras e que protegem os políticos da prestação de contas” (tradução livre). Vejamos então alguns poucos aspectos dessas questões.


O modelo brasileiro de transição do regime militar para a Nova República converge, em certos aspectos, para a experiência espanhola do Pacto de Moncloa (1977). Tratou-se de algo positivo uma anistia política ampla, porém faltou permitir uma maior investigação histórica que fizesse a sociedade refletir e aprender com o passado. Em certa medida, alguns grupos seguiram com astúcia o personagem aristocrata Tancredi Falconieri do clássico de Lampedusa (1956): “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Os aspectos histórico-estruturais do subdesenvolvimento não foram vencidos entre nós.

Matéria publicada na edição de 9 de fevereiro de 2013 da revista “The Economist” afirmou que aproximadamente 50% das diferenças de renda nos EUA e na Grã-Bretanha em uma geração são atribuíveis a diferenças na geração anterior; em sociedades mais igualitárias, a Escandinávia, por exemplo, esse número é inferior a 30% e é bastante comum que uns 70-80% do status social de uma família tendam a ser transmitidos de geração em geração. Para entendermos melhor essa questão no caso brasileiro, é preciso recuar até os acontecimentos que marcaram a campanha abolicionista no século XIX. Nesse sentido, destaco o livro da pesquisadora Angela Alonso, “Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88)”, editado pela Companhia das Letras, em 2015.

Logo no início do livro, Alonso afirma que “entender o abolicionismo, seus protagonistas e o andamento do processo político da abolição importa porque o fim da escravidão dividiu águas em nossa história, e também porque a natureza de seu remate ainda reverbera nas formas contemporâneas da desigualdade no Brasil” (p. 20). Grandes e históricas desigualdades sociais hierarquizaram o espaço urbano brasileiro e influenciam ainda hoje os elevados níveis de violência que enfrentamos. Desigualdades excessivas conspiraram contra o desenvolvimento do mercado doméstico e a construção de laços de solidariedade nacional porque travaram a ampliação da divisão social do trabalho na economia formal brasileira. 

A retórica mudancista dos abolicionistas mobilizou compaixão, direito e progresso. O Clube da Lavoura, por sua vez, representou a sociedade fundada na escravidão. O imperador D. Pedro II, equilibrando-se domesticamente e confrontado com as pressões estrangeiras, considerava a abolição questão de forma e oportunidade. No campo científico, o abolicionismo brasileiro buscou também se escorar nas ideias de Auguste Comte, que definiam o progresso como a marcha inexorável para a industrialização, a urbanização e a secularização, elementos estes que abalariam as instituições tradicionais. Segundo Alonso, “a retórica do progresso – ‘a luz do século’ – pedia a um só tempo reforma social e política, abolição e república” (p. 133). Associações e jornais foram criados contra a escravidão e até as artes (conferências-concerto) foram usadas como armas de deslegitimação do escravismo, acusado de ilegal, imoral e anacrônico. Para Alonso, o abolicionismo “cresceu justamente porque se expandiu para além de um único estrato social” (p. 146) e “ao envolver mulheres e crianças, o movimento atacou a escravidão onde ela era tão forte quanto silenciosa: em casa” (p 148). O movimento abolicionista politizou a vida privada. 

A escravidão era o “sangue do organismo social” e a base da lavoura de exportação. De acordo com Alonso, “entranhada no estilo de vida, [a escravidão] contaminara família e religião e impedia a emergência de uma ética do trabalho” (p. 204-5). O abolicionismo brasileiro não era homogêneo em suas crenças e objetivos específicos, porém as “crises intra-abolicionistas nunca explodiram o movimento porque a unidade era imperativa em face dos escravistas” (p. 226). Esta é uma valiosa lição histórica para o campo progressista no presente.

O trabalho escravo ainda é uma triste e anacrônica realidade encontrada no Brasil. Matéria da “Agência Brasil”, assinada por Andreia Verdélio (28/01/2016), indica que a maioria das vítimas de trabalho escravo no Brasil pode ser localizada em áreas urbanas, concentrando aproximadamente 61% dos casos. A matéria diz também que está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado de número 432, de 2013, que busca reduzir o conceito do trabalho escravo, retirando dele o trabalho degradante e a jornada exaustiva. Há quem argumente que estamos em tempos de globalização e que é, portanto, preciso construir as novas condições de competitividade nacional. Essas “condições” não precisam sinalizar para o passado, afinal, um novo tipo de trabalho escravo não será capaz de tornar a economia brasileira mais produtiva e próspera. Nesse sentido, novas formas de servidão (precarização das relações de trabalho, por exemplo) apenas cristalizariam a perversa herança das desigualdades disfuncionais brasileiras e conspirariam contra a confiança social nas instituições democráticas. 

A retomada do debate sobre desenvolvimento é necessária. No que diz respeito às diferenças de produtividades entre países e atividades, são interessantes as informações do “Atlas da complexidade econômica”, derivado de pesquisa de Ricardo Hausmann (Harvard) e Cesar Hidalgo (MIT). Em síntese, o processo de desenvolvimento é o avanço da complexidade econômica: diversificação exportadora com não ubiquidade. Entre nós, a perda de complexidade exportadora desde 1994 foi intensificada pela reprimarização no boom das commodities. Sobrevalorização cambial crônica da moeda brasileira, desindustrialização prematura e acomodação de trabalhadores em atividades de baixa produtividade impactaram na inflação de serviços e no baixo desempenho geral da economia. O fim do superciclo global das commodities, que expôs a fragilidade da inserção externa brasileira, se encontrou com a grave crise política. 

O Brasil já viveu o tempo no qual a sua inserção global foi primário-exportadora e os governos estiveram bem livres de vinculações orçamentárias e muitas despesas obrigatórias. A Primeira República, oligárquica e antissocial, não resolveu o problema das contas públicas brasileiras e isso ficou claro nos desdobramentos da crise de 1929: concentração de riquezas e socialização de prejuízos. Coube posteriormente ao ministro Osvaldo Aranha um levantamento dos empréstimos que Estados e municípios tinham contraído no estrangeiro, tendo em vista a consolidação da dívida externa brasileira. A década de 1930, na onda da Grande Depressão, não foi marcada pelos avanços do liberalismo econômico e da paz mundial. O fantasmagórico teatro de sombras da Primeira República foi construído no ocaso do Império, quando atores oligárquicos compreenderam efetivamente que haviam perdido a batalha da escravidão. Os tempos são outros, pois vivemos em um país urbano, porém é sempre importante aprender algo com o passado para evitarmos reproduzir, guardadas as devidas proporções, os dramas já experimentados.

Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Texto original:
CARTA MAIOR

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